quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Maio de 1968, Rebelião Estudantil e Lutas Operárias



Uma breve reflexão sobre a rebelião estudantil e lutas operárias ocorridas em maio de 1968, apresentando imagens, cartazes, textos explicativos, frases, abordando origens, desenvolvimento e fim das lutas operárias e estudantis.

O maio de 1968 foi uma das lutas sociais mais importantes do século 20. Ao contrário das interpretações ideológicas, que apresentam a rebelião estudantil apenas como revolta de geração por questões juvenis, o vídeo mostra a totalidade da crise do regime de acumulação intensivo-extensivo e sua manifestação específica na França e emergência da rebelião estudantil e lutas operárias, geralmente esquecidas.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O que é o marxismo?



O que é o marxismo? A partir de Karl Korsch e outros autores, se reconstitui o significado autêntico do marxismo e as deformações do pensamento de Marx e de seus continuadores.

A Ideologia Segundo Marx



A concepção de ideologia segundo Marx.

Video sobre a teoria social de Marx



Breve síntese do elementos principais da teoria social de Karl Marx, tais como materialismo histórico, luta de classes, método dialético, natureza humana, alienação, capitalismo, comunismo, revolução proletária, autogestão, etc.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A Causa da Derrota - Rosa Luxemburgo

O desmoronamento repentino da grande ação da classe operária belga, para a qual estavam dirigidas os olhares de todo o proletariado internacional, é um duro golpe para o movimento de todos os países. Seria inútil nos consolar com as frases gerais habituais dizendo que a luta só está adiada, que cedo ou tarde também ganharemos na Bélgica. Para julgar tal ou qual episódio da luta de classes, não basta considerar a marcha geral da História, que no fim das contas nos beneficia. Esta não é mais do que a CONDIÇÃO objetiva de nossas lutas e vitórias. O que é preciso considerar são os elementos subjetivos, a atitude consciente da classe operária combativa e seus chefes, atitude que aposta para assegurarmos a vitória pelo caminho mais rápido. Deste ponto de vista, imediatamente depois da derrota, nossa primeira tarefa é darmos conta o mais claramente possível de suas causas.

I - Quando Triunfa o Oportunismo
O que surge antes de tudo com absoluta clareza quando se passa em revista a interrompida campanha das últimas semanas, é a falta de uma tática clara e conseqüente de nossos líderes belgas.

Como primeira medida vemo-los limitar a luta ao marco da câmara. Ainda que desde o começo não houvera, por assim dizer, nenhuma esperança de que a maioria clerical capitularia, a fração socialista parecia não querer proclamar a greve geral. Esta eclodiu pela decisão soberana da massa proletária impaciente. Em 14 de abril podia-se ler no LE PEUPLE de Bruxelas: Se disse que o governo está decidido a manter-se até o fim, e também a classe se prepara para tudo. E por isso a greve geral acaba de ser proclamada em todo o país, não pelos órgãos políticos do partido, sendo por seus órgãos econômicos, não pelos seus deputados, sendo por seus delegados sindicais. É o próprio proletariado organizado que, não vendo outros meios para vencer, acaba de decidir solenemente interromper o trabalho em todas as partes".

O deputado Demblom, em 18 de abril, fez a mesma comprovação na câmara: "Quem se atreveria a dizer ainda hoje que nada está em estado de agitação, sendo os próprios agitadores, frente a fulminante explosão da greve geral, que nós mesmos não esperávamos?" (veja-se informe parlamentar de LE PEUPLE de 19 de abril).

Ao haver eclodido espontaneamente a greve geral, os chefes socialistas se declararam imediatamente solidários das massas e da greve geral, como o supremo meio de luta. A GREVE GERAL ATÉ A VITÓRIA, tal foi a palavra lançada pela fração socialista e pela direção do partido. Em 15 de abril LE PEUPLE escreve "Desde o fundo de sua alma, os socialistas haviam desejado não verem-se levados à greve geral, e o congresso de páscoa do partido, remetendo-se às circunstâncias para determinar o instrumento conveniente de luta, não havia decidido nada a respeito... porém somente a greve geral é capaz de nos assegurar definitivamente e apesar de tudo a vitória".

LE PEUPLE de 17 de abril diz: "Não há cansaço nem desânimo na classe operária, o juramos seu nome, lutaremos até a vitória".

LE PEUPLE de 18 de abril afirma: "A greve geral durará tanto tempo quanto necessário para conquistar o sufrágio universal".

No mesmo dia, o conselho geral do partido operário decidiu CONTINUAR A GREVE GERAL, depois que a câmara rechaçara a revisão.

Na manhã de 20 de abril, o órgão central do partido de Bruxelas assegura: "Continuar a greve geral é salvar o sufrágio universal".

E no mesmo dia, a fração socialista e a direção do partido, com uma súbita meia volta, decidiram terminar a greve geral.

As mesmas vacilações se manifestaram com respeito a outra palavra de ordem da campanha: A dissolução do parlamento. Quando em 15 de abril, os liberais reclamaram a câmara, os socialistas se abstiveram de intervir e portanto não votaram tampouco a favor do adiamento do momento decisivo, adiamento desejado pela burguesia.

Postos frente à decisão de terminar a greve geral, nossos camaradas retomam essa palavra de ordem e LE PEUPLE de 20 de abril recomenda aos operários: "Reivindicar por todas as partes e a voz em coro a dissolução do parlamento. Inclusive até estes últimos dias se nota um giro sobre o mesmo tema na atitude dos chefes. LE PEUPLE de 20 de abril apresenta A BREVE GERAL como o único meio de impor a dissolução da câmara. Porém, nesse mesmo dia , a direção do partido decide terminar a greve geral, e desde então a única via que permite conseguir a dissolução do parlamento parece ser a intervenção do rei.

Assim se emaranharam, se cruzaram e se chocaram mutuamente as diferentes palavra de ordem no transcurso da recente campanha belga: Obstrução ao Parlamento, Greve Geral, Dissolução da Câmara, Intervenção do Rei. Nenhuma dessas bandeiras foi prosseguida até o final e por último toda a campanha foi sufocada de um só golpe, sem nenhuma razão aparente, e os operários foram mandados de volta à suas casas, consternados, com as mãos vazias.

Se não se podia esperar que a maioria parlamentar consentisse em revisar a constituição, não se compreende porque se recorreu à greve geral, com tanta vacilação e repugnância. Não se explica porque, de pronto, precisamente quando tomava um bom impulso, foi suspenda quando se havia reconhecido que era o único meio de luta.

Se a dissolução do parlamento e novas eleições realmente deixavam prever a derrota dos clericais, é impossível então a passividade de nossos deputados quando os liberais propuseram dissolver o parlamento, e mais impossível todavia é compreender toda a campanha atual para a revisão da constituição, que de todos os modos podia ser conseguida efetivamente nas próximas eleições. Porém se é vã a esperança posta em novas eleições no desprezível sistema eleitoral atual, é por sua vez incompreensível o entusiasmo atual dos socialistas por esta bandeira.

Todas estas contradições parecem insolúveis no entanto se analisa a tática socialista em si na campanha belga, porém elas se explicam muito simplesmente enquanto se considera o campo socialista em sua união com o campo LIBERAL.

Antes de tudo foram os liberais quem determinaram o programa dos socialistas na recente luta. Fundamentalmente por desígnio o partido operário teve que renunciar ao sufrágio feminino para adotar a representação proporcional como cláusula da constituição.

Os liberais ditaram aos socialistas os MEIOS da luta, erguendo-se CONTRA a greve geral inclusive antes que houvera eclodido, impondo-lhes os limites legais quando se desencadeou, lançando primeiro a bandeira da dissolução da câmara, apelando ao rei como árbitro supremo e decidindo por fim em sua sessão do dia 19, CONTRARIAMENTE a decisão da direção do partido de 18 de abril, a culminação de greve geral. A tarefa dos chefes socialistas vinha sendo transmitir à classe operária as bandeiras lançadas por seus aliados e fazer a música da agitação que correspondia ao texto liberal. Finalmente em 20 de abril, os socialistas puseram em execução a última decisão dos liberais mandando a retirada de suas tropas.

Assim, em toda a campanha, os LIBERAIS aliados com os socialistas aparecem como os verdadeiros CHEFES, os socialistas como seus submetidos executantes e a classe operária como uma massa passiva, arrastada pelos socialistas a reboque da burguesia.

A atitude contraditória e tímida dos chefes de nosso partido belga se explica pela sua posição intermediária entre a massa operária, que se lança na luta, e a burguesia liberal que a retém por todos os meios.

II - Parlamentariosmo u Ação de Massa
Não somente o caráter vacilante desta campanha, mas também sua derrota final, explicam-se pela posição dirigente dos liberais.

Na luta pelo sufrágio universal desde 1886 até o momento atual, a classe operária belga fez uso da greve de massas como o meio político mais eficaz. Foi a greve de massas a que se deveu, em 1891, a primeira capitulação do governo e o parlamento: o começo da revisão da constituição. A ela se deveu, em 1893, a segunda capitulação do partido dirigente: o sufrágio universal com voto plural.

É evidente que, inclusive desta vez, somente a pressão das massas operárias sobre o parlamento e sobre o governo permitiu arrancar um resultado palpável. Se a defesa dos clericais foi desesperada já no último decênio do século passado, quando não se tratava mais do que o começo das concessões, a toda vista devia converter-se em uma luta de morte agora que se trata de entregar o resto: a dominação parlamentar. Era evidente que os ruidosos discursos na câmara não podiam conseguir nada. Fazia falta a pressão máxima das massas para vencer a resistência máxima do governo.

Frente a isto, as vacilações dos socialistas em proclamar a greve geral, a esperança secreta porém - evidente, ou pelo menos o desejo de triunfar no possível, SEM recorrer à greve geral, aparecem desde o começo como o primeiro sintoma do reflexo da política liberal sobre nossos camaradas, desta política que em todas as épocas, sabe-se, crê poder quebrar as muralhas da reação com o som das trombetas da grandiloqüência parlamentar.

Não, obstante, a aplicação da greve geral na Bélgica é um problema claramente determinado pela sua repercussão ECONÔMICA direta, a greve atua antes de tudo em desfavor da burguesia industrial e comercial, e em uma medida muito reduzida somente em detrimento de seu inimigo verdadeiro, o partido clerical. Na luta atual, a repercussão POLÍTICA da greve de massas sobre os clericais no poder não pode ser, portanto, mais que um efeito INDIRETO exercido pela pressão que a burguesia liberal, molestava pela greve geral transmite ao governo clerical e a maioria parlamentar. Além disso a greve geral também exerce uma pressão política DIRETA sobre os clericais, aparecendo-lhes como o precursor, como a primeira etapa de uma verdadeira revolução andarilha em gestação, para a Bélgica, a importância política das massas operárias em greve residiu sempre, e ainda hoje, no fato de que em caso de rechaço obstinado da maioria parlamentar, estão dispostas e são capazes de vencer o partido no poder por meio de distúrbios, por meio de sublevações andarilhas.

A aliança e o compromisso de nossos camaradas belgas com os liberais privaram a greve geral de seu efeito político em dois pontos.

Impondo de ANTEMÃO limites e formas legais à luta, submisso à pressão dos liberais, proibindo toda manifestação, todo espírito da massa, dissipavam a força política latente da greve geral. Os clericais não tinham porque temer uma greve geral que DE TODAS AS MANEIRAS não queria ser outra coisa que uma greve pacífica. Uma greve geral, acorrentada de ANTEMÃO aos grilhões da legalidade, se assemelha a uma demonstração de guerra com canhões cuja carga haveria sido previamente arremessada à água, a vista do inimigo. Nem sequer um menino se assusta de uma ameaça "com os punhos no bolso", assim como o aconselha seriamente LE PEUPLE aos grevistas, e uma classe no poder, lutando até a morte por sua dominação política, se assusta menos ainda. Precisamente por isso em 1891 e 1893 lhe bastou ao proletariado belga com abandonar tranqüilamente o trabalho para romper a resistência dos clericais que podiam temer que a paz se transformaria em distúrbio e a greve em revolução. Por isso, inclusive desta vez, a classe operária talvez não houvera necessitado recorrer à violência se os dirigentes não houvessem descarregado sua arma de ANTEMÃO, se não houvessem feito da expedição de guerra uma parada dominical e do tumulto da greve um simples alarme falso.

Porém, em segundo lugar, a aliança com os liberais aniquilou o outro efeito, o efeito direto da greve geral. A pressão da greve sobre a burguesia só tem importância política se a burguesia estiver obrigada a transmitir esta pressão a seus superiores políticos, os clericais que governam. Mas esta só se produz se a burguesia se sente subitamente assaltada pelo proletariado e se vê incapaz de escapar a este impulso.

Este efeito se perde quando a burguesia se encontra em uma situação cômoda que lhe permite deslocar sobre as massas proletárias que leva a reboque, a pressão que padece, antes que transmita-a aos governos clericais desembaraçando-se deste modo de um peso difícil como um simples movimento de ombro. A burguesia belga se encontrava precisamente nesta situação no transcurso da última campanha: graças à aliança ela podia determinar os movimentos das colunas operárias e fazer cessar a greve geral em caso de necessidade. Isto é o que ocorreu e enquanto a greve começou a incomodar seriamente à burguesia, esta lançou a ordem de voltar ao trabalho. E aqui terminou a "pressão" da greve geral.

Assim, a derrota final aparece como consequência inevitável da tática de nossos camaradas belgas. Sua ação parlamentar não deu resultados porque a pressão da greve geral que apoiava esta ação não se apresentou e a greve geral tampouco por ter, atrás dela, não estava o espectro ameaçador do livre desenvolvimento do movimento popular, o espectro da revolução.

Em uma palavra, a ação extra parlamentar foi sacrificada à ação parlamentar, porém, precisamente por causa disto, ambas foram condenadas à esterilidade, e toda a luta ao fracasso.

III - O Burocratismo Contra a Espontaneidade
O episódio da luta pelo sufrágio universal que acaba de terminar representa uma reviravolta no movimento operário belga. Pela primeira vez na Bélgica o partido socialista entrou na luta ligado ao partido liberal por um compromisso formal, e, do mesmo modo que a fração ministerialista do socialismo francês aliado ao radicalismo se encontrou na situação de Prometeu Acorrentado. Saberão ou não libertar-se nossos camaradas do abraço asfixiante do liberalismo? Da resposta a esta pergunta depende, não vacilarmos em dizer, o futuro do sufrágio universal na Bélgica e do movimento operário em geral. Porém a experiência recente dos socialistas belgas é preciosa para o proletariado internacional. Não será novamente sendo um efeito desse sopro fraco e enervante do oportunismo que sopra a alguns anos, e que se manifestou na aliança funesta de nossos amigos belgas com a burguesia liberal.

A decepção que acabamos de sofrer na Bélgica deve nos por em guarda contra uma política que, estendem-se a todos os países conduziria a graves derrotas e finalmente ao relaxamento da disciplina e da confiança ilimitada que as massas operárias tem em nós, os socialistas; destas massas sem as quais não somos nada e que algum dia poderíamos perder com ilusões parlamentares e experiências oportunistas.

A Causa da Derrota
Rosa Luxemburgo
1902

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Fonte: amavelmente cedido pelo Núcleo de Pesquisa Marxista.

Tradução de Nildo Viana.

HTML por José Braz para The Marxists Internet Archive.


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http://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1902/mes/derrota.htm

Manifesto Autogestionário - Um Plágio Criativo do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels - Lucas Maia dos Santos

160 anos separam o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels do Manifesto Autogestionário de Nildo Viana. O manifesto dos autores alemães é sem sombra de dúvidas um pequeno texto que vale por obras inteiras. O texto de Nildo Viana é um plágio do velho manifesto ou como o autor mesmo diz: “é um plágio de um plágio”, pois Marx e Engels são acusados de plagiarem o Manifesto da Democracia de Victor Considerant. Marx e Engels teriam plagiado Considerant? Nildo Viana afirma peremptoriamente que não, pois embora haja algumas semelhanças formais em ambos os textos, as teses defendidas no Manifesto do Partido Comunista não se encontram no Manifesto da Democracia.

Os prefácios feitos por Marx e Engels às sucessivas edições do Manifesto do Partido Comunista demonstram uma preocupação dos autores em ressaltar que as teses ali expostas não são um catecismo que deva ser seguido ad eternum. O revolucionário que de fato queira compreender o processo histórico e de alguma maneira contribuir com a transformação social, deve cotidianamente preocupar-se em analisar concretamente as condições históricas dadas. Não basta apreender um conjunto de postulados e aplicá-los indefinidamente em qualquer situação e contexto histórico. Não há nada mais idealista que tal procedimento.

O Manifesto da Liga dos Comunistas de 1848 é a expressão mais clara de uma nova concepção da história, que considera os processos reais analisados de uma maneira concreta, ou seja, que ambiciona encontrar as múltiplas determinações que explicam a realidade. Marx e Engels demonstraram que a alavanca da história é a luta de classes. A luta entre senhores de escravos e escravos no modo de produção escravista da antiguidade, a luta secular entre senhores feudais e servos no modo de produção feudal e por último, a dramática guerra civil, ora oculta ora declarada, entre burgueses e proletários trouxeram a humanidade aos nossos dias.

O que o Manifesto do Partido Comunista representa é justamente um programa prático que expressa uma concepção revolucionária. Neste texto está contido a concepção do desenvolvimento histórico entendida de um ponto de vista materialista, a relação dos comunistas com a classe operária e a posição dos comunistas diante das demais tendências oposicionistas e da literatura socialista existente até aquele período. Para demonstrar como entendem o processo histórico, afirmam: “A história de toda sociedade até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Isto coloca o proletariado na pauta das discussões, pois sendo ele produto genuíno desta sociedade, a ele também cabe o papel histórico de abolição das relações sociais existentes. É com base nisto que afirmam que o papel dos comunistas não é o de dirigir a classe operária rumo à revolução, pois segundo entendem, os comunistas não são um partido a parte, separado da classe operária, são simplesmente a fração mais resoluta do proletariado. Apresentam em relação a este a vantagem de terem consciência dos fins da luta ao passo que os proletários em geral só adquirem consciência destes fins durante o processo de luta e principalmente nos momentos mais radicais desta verdadeira guerra civil – a luta de classes. É por esta razão que terminam o texto com a célebre frase: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”!

Se em linhas gerais, o Manifesto de 1848 continua atualíssimo, pois a sociedade capitalista ainda merece ser destruída, pois o proletariado ainda é o verdadeiro sujeito da revolução, pois os comunistas continuam a existir etc., não é menos verdade que a sociedade transformou-se consideravelmente de lá para cá. Sendo, portanto, coerente com os princípios do materialismo histórico, nada mais adequado do que realizar uma atualização deste manifesto.

O materialismo histórico-dialético é um método vivo, posto que expressão concreta do movimento do mundo. Aplicando-o ao estudo de realidades concretas, produzimos interpretações teóricas destas realidades. Uma teoria é um conjunto de conceitos e categorias articulados num processo coerente de explicação da realidade. A teoria visa explicar. Sendo expressão explicativa do mundo, ela ajuda a contribuir com o processo de transformação e também permite clarear melhor as nuances do processo revolucionário, sendo importante arma no combate à contra-revolução (seja ela burocrática ou burguesa). Esta teoria deve ser constantemente submetida à análise e reanálise, deve estar sempre com os olhos voltados para o mundo, deve sempre explicá-lo. Se assim não o for, torna-se ideologia, ou seja, uma visão invertida da realidade, uma falsa consciência.

O marxismo, de teoria revolucionária, tornou-se durante o século 20 um conjunto de ideologias tão díspares e ao mesmo tempo tão distantes do marxismo que a utilização deste termo para qualificá-lo enquanto tal ficou bastante problemática. Foi o que o que ocorreu com a social democracia, com o leninismo e todas as suas variações (stalinismo, trotskismo, maoísmo etc.), com a fusão do “marxismo” com ideologias científicas (estruturalismo, fenomenologia etc.) dentre outras possibilidades de deformação. Por isto, a teoria revolucionária, ou seja, o marxismo, deve explicar o mundo e por causa disto deve ser a crítica radical de toda e qualquer ideologia já existente ou que venha a ser produzida.

Por isto, Nildo Viana se coloca nesta difícil e ao mesmo tempo instigante tarefa de “atualizar” o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. O desafio já começa com a preocupação terminológica. O termo comunismo se prestou a tantas barbáries e tantas confusões na longa história das lutas operárias do século 20 que de um conceito que visava e expressava o processo revolucionário, tornou-se um grande monstro que justificava as mais gigantescas burocracias (União Soviética, China, Cuba etc.). Tornou-se um conceito que estava articulado a uma ideologia que utilizava uma fraseologia “marxista”, mas que na verdade era somente uma forma de dominação da burocracia. A disseminação da idéia de comunismo como vinculada aos partidos bolcheviques presta-se à edificação de grandes confusões: onde antes tinha-se revolução, agora tem-se contra-revolução burocrática, onde antes tinha-se um “sonhar para frente”, para utilizar expressão de Ernst Bloch, agora tem-se um eterno retorno das sombras do passado. Assim, o Manifesto do Partido Comunista torna-se no seu plágio contemporâneo o Manifesto Autogestionário. Mata-se dois coelhos com uma cajadada só: abandona-se o uso da confusa expressão “comunismo” e da palavra “partido”. Embora Marx e Engels desse um sentido diferente à palavra partido, ou seja, aqueles que tomam partido, que tomam parte, que se posicionam como comunistas, com o desenvolvimento das burocracias partidárias e da “democracia burguesa” torna-se um termo que presta-se à confusão e não à explicação.

Formalmente, o Manifesto Autogestionário segue a mesma lógica do Manifesto do Partido Comunista. Apresenta, na seção 1, a luta entre burgueses e proletários, denominando-a de “A burguesia e o proletariado: a dinâmica da luta entre trabalho morto e trabalho vivo”. Esta é a parte mais difícil de ser atualizada, pois trata da essência do modo de produção capitalista. Por esta razão, as modificações que sofreu são mais formais e conjunturais. A preocupação centra-se então em precisão terminológica. A burguesia, fulcro dominante da exploração capitalista representa o trabalho morto, fruto da exploração, merecendo, portanto, ser sumariamente abolida enquanto classe. O proletariado, por sua vez é o trabalho vivo, o centro da criação e da criatividade. Por este motivo, a ele cabe a difícil tarefa de destruir o capitalismo e construir a autogestão social.

Na seção 2, “A autogestão das lutas operárias”, é apresentada a pré-condição sem a qual qualquer revolução proletária torna-se impossível: a autogestão das lutas. O que precisamente significa isto? Nada mais nada menos que “a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores” como disse Marx na introdução aos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores, a primeira Internacional. No período em que o Manifesto do Partido Comunista foi redigido, a luta proletária era ainda inaugural, na Alemanha e em alguns países, a burguesia ainda lutava contra os senhores feudais, o proletariado ainda não tinha as ferramentas necessárias para derrubar a burguesia como um todo, mas mesmo assim, as jornadas de fevereiro de 1848 assustaram a classe burguesa que se consolidava. 23 anos depois, no ano de 1871, em Paris, o proletariado mostra sua verdadeira face à burguesia e a classe dominante treme diante daquela insurreição. A Comuna de Paris, como a primeira experiência histórica do proletariado enquanto classe para si, ou seja, que expressa seus interesses de classe, levam Marx e Engels a fazer uma pequena “correção” em seu Manifesto. No prefácio de 1872, afirmam que o proletariado não pode direcionar suas lutas para a conquista do poder de estado, como haviam afirmado em 1848, mas sim que deve aboli-lo imediatamente com a intenção de criar o autogoverno dos produtores. A Comuna de Paris seria a forma finalmente encontrada de uma associação verdadeiramente livre de produtores.

Várias outras experiências se sucederam após a Comuna: as revoluções russas de 1905 e 1917, as tentativas de revolução na Alemanha, Itália, Hungria etc. no período de 1918 a 1923, a tentativa de revolução na Hungria e França em 1956, o maio de 1968 francês, as greves selvagens na Europa na década de 1970, a formação de Conselhos operários na Polônia em 1980 etc. Mais recentemente, algumas experiências limitadas na Argentina em 2001 com a criação das assembléias de bairros e o movimento piquetero, a experiência de Oaxaca no México etc. demonstram que as lutas operárias não acabaram, mas que pelo contrário, expandiram-se para o mundo inteiro, posto que o capitalismo estende hoje seus tentáculos a todos os lugares.

Além destas experiências históricas aqui citadas e inúmeras outras que não foram destacadas, alia-se toda a produção cultural ligadas a elas. Destaco o Comunismo de Conselhos desenvolvido por entre outros: Karl Korsch, Otho Rhüle, Anton Pannekoek, Herman Gorter, etc. O Comunismo de Conselhos, que se consolida na segunda metade da década de 1920 é a expressão teórica mais desenvolvida da classe operária até então. Desenvolveu até as últimas conseqüências a idéia de classe operária para si, vendo nos conselhos operários a forma e o princípio geral de organização das lutas operárias na sociedade capitalista bem como a forma e o princípio de auto-organização da sociedade futura.

É com base nestas experiências históricas e, entre outras concepções, mas principalmente o Comunismo de Conselhos, que Nildo Viana coloca no primeiro plano a necessidade de autogestão das lutas operárias, pois é através delas que se criam as condições materiais de se abolir as organizações burocráticas: partidos (todos), sindicatos (todos), estado (todos). Além disso, os conselhos operários são a organização necessária para auto-educação do proletariado, tanto no seu processo de luta contra a burguesia e a burocracia, mas principalmente na sua maior tarefa, ou seja, reorganizar e gerir a futura sociedade.

A seção 3, “As tarefas dos militantes autogestionários – estratégia revolucionária”, é exclusivamente dedicada ao papel dos militantes revolucionários. Os grupos e os militantes revolucionários não são a “vanguarda” da classe operária. Aos grupos revolucionários não compete dirigir a classe, determinar os rumos e os ritmos das atividades da classe. Também não é uma ação revolucionária ficar nos limites das lutas reivindicativas do proletariado. Assim, uma grande contribuição dos militantes é a luta cultural, ou seja, produção de uma interpretação teórica profunda da realidade, crítica implacável de toda e qualquer ideologia, ou seja, tudo aquilo que contribua com o avanço da consciência revolucionária.

A única estratégia verdadeiramente revolucionária dos militantes autogestionários é contribuir com a auto-emancipação do proletariado: “O papel dos militantes autogestionários é, envolvidos na dinâmica da luta operária, acelerar o processo revolucionário e reforçar as condições necessárias para a vitória do proletariado. É necessário desencadear uma intensa luta cultural e política com o objetivo de jogar as massas na luta direta pela sua emancipação e criar a ação revolucionária das classes exploradas” (Viana, 2008, p. 35). Assim, ao militante não cabe ficar sentado no sofá da sala assistindo TV, como também não é revolucionário ser “vanguarda”, da mesma forma que é contra-revolucionário ficar no nível das lutas espontâneas e autônomas. A única estratégia revolucionária é articular os fins da luta (a autogestão social) com os meios (a autogestão das lutas). Esta estratégia visa avançar sempre a luta dos estágios espontâneo e autônomo para uma luta autogestionária, o terceiro e o mais radical estágio da luta operária.

Na seção 4, “Posição diante das demais tendências oposicionistas”, faz uma crítica às concepções ditas de esquerda. Define como tendência oposicionista os grupos e indivíduos que se opõem ao capitalismo ou a governos estabelecidos tanto no plano teórico quanto prático. Cada uma das tendências tem uma base social definida: intelligentsia, burocracia, jovens estudantes etc. podendo ter em uma tendência mais de uma destas. Critica-se o pseudomarxismo acadêmico, o pseudomarxismo reformista, o pseudomarxismo bolchevista, o sindicalismo, o “socialismo” individualista, o “socialismo” filosófico, o “socialismo” romântico e o anarquismo dogmático. Com relação ao anarquismo, é necessário destacar que existe o anarquismo revolucionário. Esta, contrariamente às suas variantes dogmáticas, aponta para uma perspectiva verdadeiramente revolucionária. É uma doutrina com princípios revolucionários, mas sem uma teoria da história e do capitalismo. Alguns anarquistas assumem por isto a interpretação marxista do capitalismo e da história, ou seja, o materialismo histórico-dialético.

A posição dos militantes autogestionários diante das tendências oposicionistas é variável. Com relação às tendências academicistas, sindicalistas, reformistas e bolchevistas, a relação deve ser de crítica, excetuando em casos raros e em conjunturas específicas nas quais seja possível “uma ação conjunta por questões pontuais”. Com relação às individualistas, românticas, filosóficas e dogmáticas, a relação deve ser de debate franco com o intuito de demonstrar as conseqüências das posições e práticas destas concepções. Com relação ao anarquismo revolucionário, a relação deve ser de ação conjunta e ajuda mútua. É necessário que se diga que estamos falando de concepções e não de indivíduos ou organizações específicas. Um indivíduo pode aderir a uma concepção leninista, por exemplo, mas isto não o impede de em determinado contexto histórico mudar de posição. A falta de consciência da existência de determinadas concepções mais radicais faz com que alguns indivíduos façam a adesão a concepções reformistas ou ingênuas. Neste caso, a possibilidade de avançar para concepções mais radicais é mais factível. Entretanto, em alguns indivíduos isto já é mais problemático, pois a estrutura de personalidade de algumas pessoas que ao entrar numa dada organização burocrática vêem nela a maneira necessária, pois isto reflete a sua própria mentalidade burguesa e burocrática. Isto torna mais difícil sua mudança de concepção, pois reflete seus valores, sentimentos, enfim, o conjunto de sua mentalidade. A crítica deve ser direcionada às concepções e não a indivíduos considerados isoladamente. É claro que determinados indivíduos de organizações burocráticas, principalmente seus chefes, dificilmente mudarão de concepção. Neste caso, o combate deve ser franco e direto.

Encerra-se o manifesto com a seção 5, “A sociedade autogerida”. Nesta última parte, Nildo Viana faz uma belíssima análise utópica. A utopia, no sentido em que Ernst Bloch no seu livro O princípio Esperança emprega o termo, trata-se de uma visualização da tendência, manifestando uma consciência antecipadora. Utopia, nestes temos, não é considerada como sendo uma imagem ilusória de um lugar que não existe. Esta é uma utopia abstrata. Para Bloch, a utopia deve ser concreta, ou seja, deve ser a visualização do futuro (consciência antecipadora), mas considerando os processos de tendência. Trata-se na verdade do rompimento com o saber meramente empírico; com esta cisão, a esperança entra como categoria analítica da realidade presente. A história até Marx considerou somente o passado. A partir do materialismo histórico-dialético, o futuro, a utopia concreta entra em cena na leitura do mundo. Deste modo, as antevisões da sociedade do futuro, a sociedade autogerida, não são abstrações sustentadas em castelos de carta, são na verdade a fuga do pensamento para o futuro, a colocação da realidade no front entre o hoje e o amanhã, sendo este a expressão de uma tendência profunda existente nesta sociedade.

A análise que o autor faz da sociedade autogerida é realizada a partir da observação das experiências revolucionárias existentes até então e nas interpretações teóricas sobre estas experiências. O modo de produção capitalista tem como sua essência a produção de mais-valia. É a partir dela e para sua reprodução que tudo o mais se estrutura: mercado, estado, dinheiro, individualismo, burocracia, burguesia-proletariado etc. A essência do modo de produção comunista, pelo contrário, é a autogestão social. A partir da generalização da autogestão através dos conselhos operários, que na sociedade autogerida deverá mudar de nome, visto que não mais existirão operários, mas somente produtores livremente associados, tudo o mais será re-estruturado. O estado, o mercado, o dinheiro e as classes sociais sucumbirão. Um novo ser humano será construído, uma nova mentalidade, uma nova sociabilidade, uma nova forma de associação entre as pessoas se erguerá.

O Manifesto Autogestionário é, portanto, uma leitura indispensável para os militantes revolucionários hoje. Quem quiser ter acesso a uma obra de indiscutível radicalidade, de nomeada coerência e inteira correspondência com o processo revolucionário deve ler este manifesto. E, a partir daí, como provoca o autor, cada um deve se sentir tentado a escrever seu próprio manifesto, pois isto é coerente com marxismo revolucionário, libertário. No final das contas, este pequeno plágio é uma das obras mais originais dos últimos tempos.


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* Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Goiás e professor da rede municipal de ensino de Goiânia.

Resenha:

VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008

A Revolução Russa Segundo Maurício Tragtenberg - Nildo Viana

A Revolução Russa foi um dos acontecimentos históricos mais importantes do século 20. Ela foi palco de calorosos debates, análises, disputas, e acabou sendo fonte inspiradora de lutas e ações políticas posteriores. A versão dominante da Revolução Russa foi amplamente divulgada, sendo que a versão dos vencidos foi relegada à marginalidade. No Brasil não foi diferente. Aqueles que discutiram a Revolução Russa reproduziram a versão oficial da historiografia e deixaram de lado as ricas experiências proletárias e camponesas, o significado histórico fundamental e revolucionário dos sovietes (conselhos operários), a esquerda dissidente e suas críticas ao regime bolchevique estabelecido. Uma rara exceção existiu no seio da intelectualidade brasileira e foi representada por Maurício Tragtenberg, que fez reemergir a perspectiva do proletariado no que se refere ao marxismo e às lutas heróicas do proletariado. Assim, as duas reedições da obra de Tragtenberg, A Revolução Russa [1], é antes de tudo uma necessidade, mas também é uma brecha para que a verdade sobre este acontecimento histórico reapareça.

Compreender a obra significa compreender o autor. Da mesma forma, compreender o autor significa compreender a obra. Maurício Tragtenberg foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros e exerceu influência sobre inúmeros intelectuais, amigos, alunos. O sentido da vida e obra de Tragtenberg foi, a nosso ver, a luta pela autogestão, e não, como alguns podem pensar, “uma vida para as ciências humanas”. Tragtenberg nasceu em Erexim, Rio Grande do Sul, no dia 4 de novembro de 1929. Morou algum tempo em Porto Alegre e posteriormente mudou para São Paulo. Freqüentou o Centro de Cultura Democrático, movimentos de jovens judeus, Partido Comunista Brasileiro, Biblioteca Municipal de São Paulo, família Abramo, Partido Socialista Brasileiro e Centro de Cultura Social, de orientação anarquista. Desde os 10 anos lia Rosa Luxemburgo, Trotsky e vários outros, pois tinha acesso a uma ampla bibliografia, cuja origem era o acervo de familiares, bibliotecas, partidos, etc. Manteve contato com intelectuais como Antônio Cândido, Azis Simão, entre vários outros. Aliás, foi Antônio Cândido que lhe informa da possibilidade para entrar na USP através da proposta de uma monografia, desde que essa fosse aceita. A monografia, depois publicada como livro (Planificação: Desafio do Século 20), foi aprovada e assim ele passou a fazer parte da esfera acadêmica. Na esfera acadêmica, produziu várias obras, com destaque para sua tese Burocracia e Ideologia, além de diversos livros, bem como prefácios de outras obras, organização de livros e artigos para revistas e jornais. Chegou a ser colunista do jornal Notícias Populares, visando atingir um público composto por trabalhadores.

Alguns temas foram recorrentes e fundamentais em sua produção, tais como a questão da burocracia, a obra de pensadores como Marx, Weber e Bakunin, a autogestão social, as lutas operárias, a autonomia e auto-organização do proletariado e campesinato, autores “marginais” ou “malditos” como Rosa Luxemburgo, Makhaïsky, Korsch, Bordiga, Pannekoek, Gorter, etc.

A preocupação de Maurício Tragtenberg com a burocracia se manifesta em sua primeira obra, a monografia-livro Planificação: Desafio do Século 20, no qual aborda a questão da burocracia, iniciando com uma discussão sobre alienação, natureza humana e classes sociais, para encerrar com uma análise do bolchevismo, da burocratização da Rússia e do capitalismo de Estado. Ele encerra apresentando a alienação como sendo provocada pela divisão social do trabalho e que a reintegração do homem na humanidade e sua essência só pode ocorrer através do socialismo, que realizaria a emancipação humana. Sua obra Burocracia e Ideologia, oferece uma análise da formação e características das teorias gerais da administração, abarcando um amplo espectro histórico (do modo de produção asiático ao capitalismo) e ideológico (de Saint-Simon a Max Weber). As teorias gerais da administração são consideradas por ele como ideologias, formas de falsa consciência, representando os interesses das classes dominantes, que são operacionais no nível técnico e que mudam de acordo com a mudança nos processos econômicos e sociais. O tema da burocracia é retomado em Administração, Poder e Ideologia, que aborda o problema das grandes corporações e questões como a co-gestão, o participacionismo e outras formas que as grandes empresas utilizam para enquadrar e integrar os trabalhadores. A crítica da burocracia continua em Sobre Educação, Política e Sindicalismo, mas desta vez focalizando a burocracia escolar e universitária.

Outro tema fundamental na obra de Tragtenberg é o da educação libertária e da autogestão das lutas operárias. A educação está presa nas malhas da burocracia, mas é um processo contraditório, havendo brechas e possibilidades, lutas que são definidoras da produção, apropriação e expropriação do saber. Daí a presença em sua obra do tema da “pedagogia libertária” ou “autogestão pedagógica”. Por isso ele analisava os educadores libertários (Francisco Ferrer), e as experiências históricas (a autogestão pedagógica na Espanha). Isto estaria ligado ao processo de constituição de uma nova sociedade e, retomando Marx, entendia que tal processo seria resultado da luta da classe operária, de sua auto-educação e auto-organização. Segundo Tragtenberg, em Reflexões sobre o Socialismo, apesar da tendência à burocratização, a classe trabalhadora nega este processo criando organizações horizontais, igualitárias, novas relações sociais. A chave para entender a formação de uma nova sociedade está no desenvolvimento destas formas de auto-organização do proletariado. No seu processo de luta, de auto-organização e associação (comissões de fábrica, comitês de greve, conselhos operários), se encontra o embrião da futura sociedade autogerida. É aí que se encontra a razão de sua crítica aos partidos e sindicatos, bem como sua oposição ao capitalismo de Estado (“socialismo real”).

É neste contexto da produção teórica de Tragtenberg que podemos compreender melhor o seu livro sobre a Revolução Russa. Tragtenberg analisa a pré-história da Revolução, analisando a Rússia Imperial, a evolução do czarismo, as rebeliões camponesas, a igreja. Depois analisa a sociedade russa pré-revolucionária, no qual apresenta um panorama das classes sociais existentes neste período, os debates entre as tendências políticas, e a Revolução de 1905 e o papel dos partidos políticos. O processo da Revolução Russa é a parte seguinte, na qual aborda a revolução camponesa na Ucrânia, a instauração do regime bolchevique, a revolta de Kronstadt, a questão sindical e a Oposição Operária de Alexandra Kollontai, os Sovietes e seu esvaziamento pelos bolcheviques, e diversas questões postas no processo de luta de classes na Rússia deste período (ditadura do proletariado, questão nacional e colonial, assembléia constituinte).

É neste contexto que ele apresenta, na parte final, a discussão sobre o partido político. Ele questiona o centralismo democrático e aponta suas conseqüências. Segundo Tragtenberg, “as revoluções que procuram mudar as relações de propriedade e não somente as pessoas que governam, instaurando um novo modo de produção, não são feitas por partidos, grupos ou quadros, mas resultam das contradições sociais que mobilizam amplos setores da sociedade”. O papel do Partido Bolchevique foi promover uma contra-revolução. O partido passa a ser um estado burguês em miniatura e defender o liderismo e centralismo. O partido reproduz a mentalidade burocrática e cria ideologias para se justificar e legitimar, isto, tal como a ideologia leninista da nulidade operária. O partido assume o poder estatal e toma conta da sociedade, realizando uma aliança entre a burguesia de Estado e a tecnocracia, o que promove a implantação do capitalismo de Estado. O substitucionismo apontado por Trotsky em seu período de juventude e em polêmica com Lênin (O partido substitui a classe; o comitê central substitui o partido; um ditador único substitui o comitê central) se realiza na realidade concreta. O bolchevismo já era ideologicamente o que se tornou praticamente a nível nacional, ou seja, foi o promotor do capitalismo estatal. As ideologias e ações do Partido Bolchevique confirmam a tese do substitucionismo: as teses defendidas por Lênin (gestão individual das empresas) e Trotsky (a militarização dos sindicatos) e a prática efetuada por ambos (massacre na Ucrânia e em Kronstadt) são manifestações concretas de algo que já estava em germe, em alguns casos, ou já estavam desenvolvidas, mas sem aplicação prática.

Assim, Tragtenberg faz uma revisita ao processo histórico da revolução russa partindo da perspectiva do proletariado. Neste sentido, esta obra de Tragtenberg (mas não só esta) mostra como a perspectiva do proletariado está presente na análise histórica e na reconstituição histórica. Trata-se de uma questão discutida na historiografia, mas sob a forma relativista e geralmente com tendência individualista. A reconstituição de um fenômeno histórico é realizada tendo por base as informações existentes sobre ele, as ferramentas intelectuais e analíticas de quem a faz, os valores, sentimentos, concepções e interesses do mesmo, que estão na base da escolha e formação destas ferramentas intelectuais.

A concepção cientificista segundo a qual bastaria ter um instrumental metodológico e/ou uma abordagem supostamente teórico-sistemática para dar conta da reconstituição do fenômeno histórico é ilusória e nada tem de inocente. Esta concepção revela uma perspectiva de classe, que está na sua base e também dos “métodos” e “teorias” apresentados como a solução mágica para chegar ao “conhecimento científico”, sendo, na verdade, construções ideológicas, metafísicas e reificadas. O seu oposto, o relativismo, já abandona a pretensão da verdade e se refugia em outras ideologias metafísicas e imprecisas, fazendo do descompromisso ou do compromisso duvidoso a sua máxima e seu guia. Assim consegue disfarçar a perspectiva de classe que está na sua base.

Na obra de Tragtenberg, nenhuma destas alternativas se encontra presente. A história da Revolução Russa é apresentada em seu processo social de constituição, perpassado pela luta de classes, pelos desdobramentos destas lutas, pelas formas organizativas, intelectuais e ideológicas que assume, num processo analítico que não apenas mostra as forças em luta, mas suas debilidades e, principalmente, como o discurso dominante, burocrático-bolchevista, é ideológico, uma falsa consciência sistemática da realidade, e, ao mesmo tempo, eficaz, mobilizador e legitimador da exploração do proletariado pela burocracia metamorfoseada em burguesia de Estado.

Isto é perceptível, por exemplo, na análise que ele faz do economista Preobrajenski. Este ideólogo bolchevique irá escrever a obra “A Nova Ciência da Economia”, na qual discute as leis gerais do capitalismo e do socialismo. Ele produz a tese da “acumulação socialista primitiva”, na qual existiria, tal como na época de surgimento do capitalismo existiu a “acumulação primitiva de capital”, a pilhagem. Tragtenberg coloca que, para Preobrajenski, “a acumulação socialista aparece de duas formas: pela redução do salário dos operários e funcionários do Estado ou à custa das rendas dos pequeno-burgueses e capitalistas. Pelo controle dos impostos, o setor socialista poderá apropriar-se da mais-valia do setor privado”.

Isto tem como conseqüência o reforço do setor socialista da economia e do aparato partidário. Os setores que seriam pilhados seriam, fundamentalmente, os do setor privado, que, naquele momento, eram os camponeses e outros setores (dependendo do momento histórico). A tese, já presente em Engels e Lênin, da “segunda luta”, agora entre proletários e camponeses, é retomada e serve como justificativa e legitimação da superexploração do campesinato.

A questão da perspectiva de classe aparece neste exato momento. Em primeiro lugar, o paralelo entre revolução burguesa e proletária expressa uma perspectiva de classe por parte de Preobrajenski. Suas teses apontam para confundir revolução burguesa e revolução proletária, propriedade estatal com “setor socialista”, acumulação primitiva de capital com produção de excedente no socialismo, etc. Ora, a confusão, ou seja, a fusão de duas coisas radicalmente diferentes é apenas a manifestação de uma perspectiva de classe, burocrática, no qual um dos dois elementos é destruído e permanece apenas na linguagem. O socialismo com exploração, mais-valia, acumulação, pilhagem, aparato burocrático centralizado, partido centralizado e gestor, não é nada mais do que o capitalismo estatizado na prática que aparece como sendo o seu contrário. Essa magia das palavras, porém, não é perceptível imediatamente por alguém que não parte da perspectiva do proletariado e é aqui que reside o problema da reconstituição histórica e perspectiva de classe. Para alguém ler Preobrajenski e perceber a confusão e seu significado, seria preciso possuir valores, sentimentos e concepções antagônicos aos dele. Uma leitura “neutra”, “objetiva”, fundada em determinados métodos e concepções, realizada por portadores de determinados valores e sentimentos, não ultrapassaria o “dado”, ou seja, o discurso de Preobrajenski, o que significaria acreditar nele e tomar seu discurso em favor de um capitalismo estatal como discurso em favor do socialismo.

Este não foi o caso de Tragtenberg, que percebeu o caráter da obra de Preobrajenski e não só dele, mas também de Lênin, Trotsky, Stálin e vários outros, revelando os interesses de classe por detrás da legitimação do capitalismo estatal. Assim, a obra de Tragtenberg tem como mérito partir da perspectiva do proletariado e ao fazer isso revelar que por detrás das produções intelectuais existe uma camada profunda, e, para muitos, invisível, que é determinante no seu processo de produção.

Também é este elemento que permite ao pesquisador reconhecer o valor e significado das iniciativas proletárias e camponesas, tal como Tragtenberg faz quando analisa o caso da Ucrânia, de Kronstadt e dos Sovietes. Os acontecimentos históricos ganham visibilidade ao estarem envolvidos em um processo que é o da auto-emancipação do proletariado e de outros grupos explorados ou oprimidos e, assim, a vida e a morte não são apenas possibilidades abstratas ou fatos registrados, e sim manifestação de seres vivos, idéias, valores e sentimentos. O mesmo vale para as obras culturais, os livros não são vistos apenas como coisas materiais com textos escritos, mas como portadores de projetos, interesses, valores, sentimentos, concepções. Os livros são manifestações de seres humanos e se o livro é vazio, isto se deve ao vazio de quem o escreveu.

Enfim, Maurício Tragtenberg vai além da historiografia oficial e da história dos vencedores, por compartilhar com o proletariado a mesma perspectiva. A sua obra sobre a Revolução Russa, embora introdutória e resumida, reconta e faz reviver a história de uma sociedade que esteve à beira da transformação social e que perdeu a oportunidade, devido à derrota dos explorados diante dos seus “representantes”. Também apresenta uma lição metodológica, a de que o método não é algo reificado e fora das relações sociais, separado de quem o escolhe, produz e/ou usa. Desta forma, Tragtenberg recuperou a consciência teórica da Revolução Russa e fez avançar a consciência da história.



* Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás e UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.

[1] Tragtenberg, Maurício. A Revolução Russa. São Paulo, Faísca, 2007; Tragtenberg, M. A Revolução Russa. São Paulo, UNESP, 2007.

http://www.espacoacademico.com.br/093/93res_viana.htm

O FIM DA ORTODOXIA MARXISTA - KARL KORSCH

As conclusões do grande debate, cujas primeiras fases ficaram consignadas nos anais do Partido sob o nome "controvérsia Bernstein", revela claramente a enorme contradição entre o ser e a consciência, entre a ideologia e a realidade, que caracteriza o movimento proletário dos últimos trinta anos. Esta polêmica, que respeita ao mesmo tempo a teoria e a prática do movimento socialista, explode, publicamente, pela primeira vez, no seio da social-democracia alemã e internacional da geração anterior pouco depois da morte de Friedrich Engels. Quando nessa data Eduard Bernstein, que tinha já dado sérias contribuições ao marxismo, exprimiu, pela primeira vez, no seu exílio londrino, as suas opiniões "heréticas" (inspiradas principalmente no estudo do movimento operário inglês) a propósito da relação entre a teoria e a prática no movimento socialista alemão e europeu da época, as suas concepções e pontos de vista foram, de momento e muito tempo após, unanimemente mal interpretadas e compreendidas, tanto por amigos como inimigos.

Em toda a imprensa burguesa e revistas especializadas, a sua obra Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie, foi acolhida com gritos de alegria e coberta de elogios. O dirigente do Partido Nacional-Socialista recentemente fundado – o ideólogo social imperialista Friedrich Naumann – declarava sem disfarces no seu jornal: "Bernstein é o nosso posto mais avançado no campo da social-democracia", e nos círculos da burguesia liberal reinava na época a esperança confiante que esse primeiro "revisionista" sério do marxismo romperia, também, oficialmente, com o movimento socialista para alinhar no campo do reformismo burguês.
Essas esperanças da burguesia encontravam a contra partida nas opiniões formuladas na época no seio do Partido Social-Democrata e de sindicalistas. Os chefes desse movimento admitiam, claramente, em privado, que "revendo" o programa marxista da social-democracia Bernstein apenas revelava oficialmente a evolução realizada desde há tempos na prática, e que tinha transformado o movimento social-democrata, de um movimento revolucionário de luta de classes num movimento de reforma político e social; mas esses mesmos chefes tinham grande cuidado em não divulgar publicamente essa opinião para uso doméstico. Bernstein, tendo terminado o seu livro convidando o Partido a "ousar parecer o que é: um partido de reforma política e social", foi discretamente chamado à ordem (numa carta privada, publicada posteriormente) por esse velho demagogo astucioso do comitê executivo do Partido, Ignaz Auer, que o advertia amigavelmente: "Meu caro Eddy, isso são coisas que se fazem mas que não se dizem". Nos seus discursos públicos, todos os porta-vozes teóricos e ativistas da social-democracia alemã e internacional, os Bebel, os Kautsky, os Victor Adler, os Plekhanov e todos os outros, tomaram posição contra esta divulgação imprudente do segredo tão cuidadosamente guardado. Quando o congresso do Partido, em Hanôver, em 1899, durante um debate de quatro dias aberto por Bebel com um relatório de seis horas, Bernstein foi submetido a um processo em regra. Escapou por pouco à expulsão. Mas, durante muito anos, ele continuou a ser alvo dos ataques da direção nas reuniões de militantes e aderentes, na Imprensa, nas manifestações e nos congressos oficiais do Partido e dos sindicatos; e, a despeito do fato que o revisionismo de Bernstein tivesse já triunfado nos sindicatos e já não encontrasse resistência no seio do Partido, continuou-se a falar do "partido de luta de classes" revolucionário e anticapitalista até ao ultimo minuto, isto é, até à conclusão do pacto de paz social de 1914, seguido pelo pacto de associação do Capital e do Trabalho em 1918.
Os ativistas e os teóricos da política conduzida pelo executivo do partido social-democrata e o aparelho sindical a ele ligado, tinham boas razões para adotar esta atitude de jogo duplo face à primeira tentativa séria de formulação teórica dos fins e dos meios reais da política operária burguesa que eles na realidade praticavam. Hoje os representantes do aparelho do Partido Comunista Russo e de todas as seções nacionais da Internacional Comunista têm necessidade, para esconder o caráter real da sua política, de utilizar a piedosa lenda da progressão na "construção do socialismo na União Soviética" e da natureza intrinsecamente "revolucionária" da política e táticas adotadas em todas as circunstâncias por todas as direções nacionais dos partidos comunistas. Semelhantemente, na época, os hábeis demagogos, que tinham assento no executivo do partido social-democrata e estavam à cabeça do aparelho sindical, tinham necessidade, para esconder as suas naturais tendências, em manter a piedosa lenda, segundo a qual o movimento que dirigiam se via por vezes constrangido, de momento, a desempenhar a função de retocador do Estado burguês e da ordem econômica capitalista através de todo o gênero de reformas, mas "que no seu objetivo último", ele seguia em direção à revolução social, ao derrube da burguesia e a abolição da ordem econômica e social capitalista.
Mas, na pseudo-luta que na altura sustentavam contra o revisionismo de Bernstein, os demagogos do executivo do Partido Social-Democrata e os seus advogados "teóricos" não eram os únicos a reforçar a tendência para a degenerescência burguesa e reformista do movimento socialista. Nesse sentido, viu-se trabalhar durante muito tempo, inconscientemente e contra si próprios, teóricos revolucionários radicais tais como Rosa Luxemburgo, na Alemanha, e Lênin, na Rússia, os quais, subjetivamente, pensavam dirigir uma luta dura e sem compromissos contra a tendência representada por Bernstein. Quando hoje em dia e à luz das mais recentes experiências das últimas três décadas, nos debruçamos sobre esses primeiros conflitos direcionais no seio do movimento operário alemão e europeu, parece-nos um pouco trágico constatar quanto mesmo Luxemburgo e Lênin estavam profundamente enraizados na ilusão de que o "bernsteinismo" apenas representava um desvio em relação ao caráter fundamentalmente revolucionário do movimento social-democrata de então; trágico igualmente ver com que fórmulas objetivamente falsas eles entendiam dirigir a luta contra a degenerescência burguesa da política do partido socialista e dos sindicatos.
Rosa Luxemburgo terminava a sua polêmica contra Bernstein, publicada em 1900 sob o título Sozialrefom oder Revolution (Reforma ou Revolução), com esta profecia catastroficamente falsa: "A teoria de Bernstein, foi a primeira e a ultima tentativa para dar ao oportunismo uma base teórica". Ela pensava que o oportunismo, ilustrado na teoria pelo livro de Bernstein e na prática pela tomada de posição de Schippel sobre o problema do militarismo [1], "foram tão longe que nada lhe restava acrescentar" (Rosa Luxemburgo). Com efeito, Bernstein tinha declarado, com insistência, "que aprovava a quase totalidade da prática atual da social-democracia" ao mesmo tempo que punha irremediavelmente a nu toda a insignificância prática da fraseologia revolucionária então em vigor sobre "o objetivo final", ao reconhecer abertamente: "O objetivo final, qualquer que seja, nada é para mim; o movimento é tudo". E contudo, Rosa Luxemburgo, vítima de uma notável alucinação ideológica, não dirigiu o seu contra-ataque crítico contra a prática da social-democracia, mas contra a teoria de Bernstein, que não passava da expressão autêntica da natureza real desta prática. Para ela, o traço característico que diferenciava o movimento social-democrata da política burguesa reformista não era a prática, mas expressamente o "objetivo final", o qual continuava, contudo, como a cobertura ideológica desta prática, ou mesmo uma simples fraseologia. Ela afirmava, com paixão, que "o objetivo final do socialismo é o único elemento decisivo que distingue o movimento social-democrata da democracia burguesa e do radicalismo burguês, o único elemento que, mais que dar ao movimento operário a vã tarefa de retocar o regime capitalista para o salvar, faz daquele uma luta de classe contra esse regime, para a abolição desse regime". Mas esse "objetivo final" de ordem geral que, segundo as palavras de Rosa Luxemburgo, devia ser tudo e distinguia o movimento social-democrata da política reformista burguesa, verificou-se assim como o provou a história posterior, não ser outra coisa senão o nada, anteriormente definido por Bernstein, esse sóbrio observador da realidade.
Todos aqueles que os acontecimentos dos últimos quinze anos não cegaram, encontrarão a confirmação decisiva desta evolução histórica nos discursos pronunciados, quando dos diversos aniversários "marxianos" destes últimos tempos, pelos próprios principais participantes. É o caso, por exemplo, dos pronunciados nesse mesmo banquete, organizado em 1924 pelas grandes figuras do marxismo social-democrata, reunidas em Londres para celebrar o 60.º aniversário de Kautsky. Nessa ocasião, a "controvérsia" histórica entre o "marxismo ortodoxo" "revolucionário" de Kautsky e o reformismo "revisionista" de Bernstein terminou em harmonia com as "palavras de amizade" (recolhidas pelo "Vorwaerts") pronunciadas por Bernstein já com 75 anos, em honra dos 70 de Kautsky, e a simbólica cerimônia do abraço que se seguiu: "Quando Bernstein terminou e os dois velhos, cujos nomes são objeto de respeito há três gerações, se beijaram e abraçaram durante muitos segundos, quem poderia ter resistido à emoção, quem teria podido resistir a ela?".
E, em 1930, Kautsky, então com 75 anos, escreveu exatamente no mesmo sentido que no "Kampf" social-democrata de Viena, em honra do 80.º aniversário de Bernstein:
"Desde 1880, fomos, nos negócios políticos do Partido, dois irmãos siameses; mesmo dois irmãos siameses podem discutir um pouco entre si. E por vezes fizemo-lo abundantemente. Mas mesmo nesses momentos, não teríamos podido falar de um sem falar do outro".
Outros testemunhos posteriores de Bernstein e de Kautsky fazem evidenciar o mais claramente possível o erro trágico desses dois radicais da esquerda alemã de antes da Guerra, os quais, com o slogan "objetivo revolucionário final contra a prática quotidiana reformista", entendiam conduzir a luta contra o aburguesamento prático, e logo também teórico, do movimento operário social-democrata, mas que, na realidade, apenas contribuíram para reforçar esta tendência histórica representada por Bernstein e Kautsky nos seus respectivos papéis.
Tendo em conta as devidas proporções, o mesmo acontece com um outro "slogan" empregado, na mesma época, pelo marxista russo Lênin, a fim de traçar, tanto no seu próprio país como a nível internacional, a linha de demarcação entre a política operária burguesa e a dos "revolucionários". Rosa Luxemburgo considerava-se a adversária mais radical do bernsteinismo, e na primeira edição de "Reforma ou Revolução", de 1900, reclamava ainda expressamente a exclusão de Bernstein. Do mesmo modo, Lênin considerava-se como o inimigo mortal do "renegado" Bernstein, e de todos os desvios heréticos cometidos, no seu livro, em relação à doutrina pura e inalterada do programa marxista "revolucionário". Mas, exatamente como Luxemburgo e os social-democratas alemães de esquerda, o bolchevique social-democrata Lênin utilizou, na sua luta contra o revisionismo social-democrata uma plataforma totalmente ideológica. Com efeito, para ele, a garantia do caráter "revolucionário" do movimento operário não se encontrava no seu conteúdo de classe econômica e social real, mas exclusivamente na tomada em mão da luta por uma direção encarnada no Partido revolucionário que guia a teoria marxista correta.
Notas:
[1] Schippel (1859-1928) pertence ao grupo revisionista da aprovação do orçamento militar, pensando que este permitiria alargar o mercado de trabalho. (retornar ao texto)

http://www.marxists.org/portugues/korsch/1937/12/ortodoxia.htm