sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Considerações extemporâneas sobre a nossa não-ida ao FSM

Considerações extemporâneas sobre a nossa não-ida ao FSM

Com o apoio dos meios espetaculares de informação e mistificação, do grande capital privado e do aparato estatal iniciou-se, com muitas luzes e aplausos, para após alguns dias concluir-se de modo pálido e sem charme, ainda que róseo, o Fórum Social Mundial (FSM),em Porto Alegre, Brasil, em Janeiro deste ano.
Ali, durante alguns dias, os candidatos a gerentes do sistema, ainda que candidatos a postos muito inferiores na atual hierarquia mundial do capital, reuniram-se para dar legitimidade contestatória às recomendações de "democratização", "participação", "diminuição da pobreza", "cooperativismo" e "desenvolvimento ecologicamente sustentável"; recomendações que, desde há alguns anos, o Banco Mundial vem fazendo aos governos nacionais e locais. Anunciado como contraponto propositivo ao Fórum Econômico Mundial, realizado anualmente na cidade de Davos, na Suíça, o qual reúne diretamente em assembléia os senhores do mundo e seus mandatários mais próximos, o FSM foi pensado e realizado (e por isso obteve o apoio do sistema, desde a cobertura ampla e diária da rede Globo nos noticiários, no seu canal a cabo, e nas telenovelas ao aparato estatal colocado a seu serviço) para se constituir na via de integração do "movimento antiglobalização" aos mecanismos de negociação que o capital mundializado tem buscado criar. Em outras palavras, um instrumento de pacto social mundial; em conseqüência deste conteúdo, a sua forma e sua dinâmica fundaram-se, desde logo, na estrutura vertical e hierarquizada que compõe a sociedade atual.
Composto e determinado em sua dinâmica essencialmente por todas aquelas fatias da contestação consentida, reunidas em Porto Alegre para se apropriar programaticamente do que o capital mundial quer e precisa para a manutenção de um sistema que já não pode ser reformado, senão nas idéias e suas ilusões, o que só é possível na medida em que ele próprio se aproprie das contestações verdadeiras dos de baixo: eis o que foi, efetivamente, o FSM e também o que ele demonstrou-se ser em sua declaração final.
Mais de mil jornalistas, em sua maioria estrangeiros, funcionários das principais empresas e agências internacionais de informações; centenas e milhares de funcionários de ONGs, sociólogos, assistentes sociais e arrivistas de toda espécie; a classe média democrática e ressentida, com seus políticos, mandatários e carreiristas sem desânimo; sindicalistas, estudantes com aspirações intelectuais e progressistas, professores, artistas e escritores que, antes de sustentarem a contestação social, sustentam-se dela – eis, enfim, de que se compôs essencialmente o público do FSM. Ao lado desses, e em muitos aspectos, em oposição a eles, toda uma multidão minoritária e subordinada de movimentos e ativistas, cujas diferenças entre si e deles com o próprio Fórum, serão reconhecidas e analisadas posteriormente.
 O FSM reproduziu a lógica do mercado e do Estado
O Fórum Social Mundial, reconhecido nessas características, não expressou só uma "conspiração" do Estado, do capital e seus reformistas tentando se apropriar do movimento antiglobalização. Essa é, desde sempre, a astúcia própria do sistema que busca integrar a si toda forma de contestação, tal qual a mercadoria faz com tudo o que pode ter uso, real ou ilusório:integra o outro, destruindo-o enquanto outro, submetendo-o à sua loucura identitária, onde toda potencialidade do conflito deve ser dissolvida. Assim, antes de tudo, o FSM foi uma armadilha integradora, uma tentativa de conduzir todo o antagonismo para o interior mesmo da lógica mercantil e institucional. Os funcionários do capital – nos governos, nos partidos e ONGs – apenas realizam essa lógica que, afinal, não lhes é "imposta", posto que ela é, desde sempre, aquela sob a qual se movem pois toda outra língua lhes é estrangeira.
Daí que toda a sua perspectiva "propositiva" nada mais seja do que a ideologia própria dos portadores de mercadorias, pequenos e grandes, que no mercado, têm a ilusão de negociar livremente, tanto quanto nas eleições parlamentares e para os governos, onde têm a ilusão de decidir livremente; que têm a ilusão de determinar, com suas falas e propostas de acordos – adequadas desde o início às "tendências do mercado" – os resultados da negociação. Não é necessário dizer, mas sejamos redundantes, esse é o falso diálogo, a fala de personagens cujo texto não foi escrito por ninguém, mas determinado pelo movimento realista e autonomizado das coisas. É o mesmo movimento realista que move o capital, onde o lucro quer produzir mais lucro e os homens servem às coisas e não as coisas aos homens.
 No movimento “antiglobalização” nem tod@s são anticapitalistas
 Que o FSM se realize como tentativa de apresentar-se como síntese das lutas "antiglobalização", é só a realização daquilo mesmo que caracteriza toda a esquerda institucional e sua tentativa permanente de tornar-se porta-voz das reivindicações, para incluí-las - uma vez mais e sempre - na lógica da "diversidade consentida" do mercado e do jogo eleitoral. Um outro mundo é possível diz o FSM. A tentativa de traduzir o realmente diverso no mundo falsamente plural do mercado e do Estado apresenta-se, ainda uma vez, como tentativa de colorir de tons diversos o cinza do mundo único do capital e do Estado. A tentativa integradora não é puramente exterior ao "movimento antiglobalização", uma vez que inúmeros setores da esquerda oficial efetivamente têm sido parte de tal movimento, que caracteriza-se, antes de mais nada, por uma grande heterogeneidade. Com efeito, Bové, Le Monde Diplomatique, ATTAC e Cia. Ltda. são parte de tal movimento e ainda que - no caso particular do Brasil - a esquerda do capital jamais tenha mexido uma palha nas mobilizações e dias de ação Global, ela é, no entanto, em nível mundial, uma das suas componentes, efetivamente presente em seu interior. Em determinados lugares (na França, por exemplo, mas não apenas lá) ela é a própria tônica de uma contestação que - nesses casos – já nasce morta, pois integrada e comprometida até a alma com o sistema.
Na heterogeneidade dos "movimentos antiglobalização", encontramos, como uma das expressões do anúncio de Seattle - anúncio de uma resistência mundial, tão mundial quanto a economia deles - a AGP, que em dias de protestos horizontais e internacionalistas, apresenta-se como coordenação de lutas convergentes contra o capital transnacional e suas instituições. Tais dias de Ação Global encheram-nos a imaginação e impulsionaram-nos as mentes e as mãos; protestos que, sem dúvida, anunciam a necessária e central luta em nível mundial contra o capital transnacionalizado e suas instituições.
Os perigos de um ativismo especializado e separado
Entretanto, mesmo entre esses setores anticapitalistas do "movimento antiglobalização" - ligados ou não às iniciativas da AGP - e a partir dos próprios impulsos de Seattle, uma série de ilusões começou a tomar corpo. Trata-se, neste caso, da tendência à construção de um movimento especializado e separado. A perseverança unilateral dos "dias de luta contra o capitalismo", como se jornadas pudessem derrotá-lo, termina por constituir a tendência de um movimento separado – e, com ele, uma consciência separada e, portanto, ilusória – do antagonismo cotidiano contra todas as faces da barbárie capitalista; e isso, precisamente, após a boa promessa, anunciada em Seattle, da convergência das críticas práticas que, sob os diversos aspectos da vida cotidiana, se insurgem contra a sociedade mercantil. Tal convergência pode se instituir, por seu desenvolvimento, como crítica de totalidade da vida cotidiana submetida ao sistema único das alienações do capitalismo contemporâneo.
No entanto, transformando o calendário deles em calendário de nossos protestos, terminou-se por constituir, em determinados setores, uma cultura de apartação entre as mobilizações mundiais e o antagonismo cotidiano e, em conseqüência, uma militância também apartada, separada e iludida; uma militância especializada que, na autocontemplação estetizada da imagem de seus feitos, contenta-se em substituir a crítica prática de milhões desde as fábricas e bairros pelo enfrentamento desenraizado. Age-se aqui como o pequeno mercador que reconhece que o diálogo não define os rumos da negociação, e o substitui pelos gritos; com isso, ele quer alterar os rumos da negociação, mas não a sua existência mesma. Ou como o pequeno quadro da esquerda oficial, que, ao “descobrir” que no parlamento nem tudo é negociável, radicaliza no discurso mas não altera em nada a crença no próprio parlamento. Em outras palavras, o ativismo separado, ainda que o mais radicalizado, tem tantas ilusões quanto são ilusórias as crenças dos pequenos comerciantes e as do parlamentar “radical”. Tal indignação, puramente aparente, é na verdade a confissão da própria impotência. Enquanto resistir  entre nós a tendência do ativismo separado e substitucionista, seremos sempre presas fáceis da recaptura, da re-subordinação, da recuperação.
 O diálogo prático é o caminho para a convergência das autonomias
 Pensamos que da convergência das múltiplas práticas à crítica de totalidade (que deve ser diversa na forma e nas motivações, mas "unitária" no combate ao identitarismo totalitário do mercado e à opressão tirânica do Estado), é forçoso que construamos um tempo e um espaço próprios; um tempo que não é aquele dos projetos, aprovações e financiamentos estatais ou privados, tão rapidamente encaminhados, como aquele que se deu no Fórum Social Mundial, nem o espaço analítico das instituições organizadoras da falsa sociabilidade, do falso diálogo. A crítica de totalidade há de ter um tempo próprio, o vagaroso e enriquecedor tempo da conversação, cujo critério é o da argumentação legítima, posto que fundado no diálogo real, o diálogo entre os diversos setores sociais que realizam a crítica prática cotidiana do capitalismo.
Há de ter um espaço autônomo, não cedido ou mitigado, mas conquistado como o espaço mesmo da insurgência, da rebeldia e parte da resistência à organização estato-mercantil das vidas e dos lugares vividos.Enfim, um tempo-espaço que resista a ser re-subordinado na medida em que absoluta e intransigentemente fundado na autonomia mesma da experiência antagonista. Que seja, assim, a expressão da constituição do diálogo real, não só o diálogo da experiência, mas o dizer comum dessa experiência, a co-produção do comum; em outras palavras, ser conscientemente coerentes com o que temos feito. E nisso, precisamente, mais do que simplesmente convergir eventualmente, tecer a totalidade da negação ao mundo alienado da mercadoria, do dinheiro, do capital, da hierarquia sócio-estatal e de suas ilusões. Tecer, com a força das palavras ditas em atos e tornadas conscientes de si, uma trama outra, a da insurgência tornada, assim, incapturável, pois dita e feita.
 O FSM foi uma armadilha de captura e despotencialização do antagonismo
 Mas precisamente porque apenas começamos a dialogar e a percorrer esse tempo-espaço co-produzido, e face às ilusões que no nosso próprio interior passou-se a alimentar num movimento separado (e, portanto, novamente especializado), o chamado decretado pelo Estado e o capital, para o Fórum Social Mundial, teve tanta repercussão junto a movimentos de base e ativistas – e não apenas junto àqueles cujo antagonismo ilusório (pois separado e especializado) é, por natureza, vocacionado à  recuperação, mas, infelizmente, também alguns daqueles que, de fato, buscam, desde o seu cotidiano, superar as determinações do sistema. É neste último caso onde encontra-se, seguramente, a principal contradição presente no Fórum: a contradição entre o conteúdo da ação de diversos movimentos e ativistas, potencializadora da crítica de totalidade e a consciência ainda parcial, acerca de sua própria prática antagonista. Tal parcialidade lhes permitiu mover-se a um espaço o qual, precisamente, implicava – ainda que momentaneamente - a "neutralização" do antagonismo, a sua despontecialização.
Muit@s companheir@s honestos e combativos, com os quais compartilhamos, inclusive corporalmente, o combate nas ruas, foram ao FSM, com o intuito de "demarcar", "denunciar”. Ao lado deles, com a mesma intenção, outros de outro feitio – os eternos candidatos a "dirigentes" da humanidade, os neoleninistas e neobolcheviques de várias marcas. Num caso e noutro, somos forçados a dizer, não apenas a intenção formal, mas o ato real da ida ao FSM resultou estéril e espetacular.
Quanto aos primeiros, no entanto, mais que isso: a ida ao Fórum Social Mundial, no momento em que se davam, na Suíça, ainda uma vez mais, como em Seattle, Washington, Praga, os combates ao topo da hierarquia capitalista diretamente reunida em assembléia mundial, implicou uma despontecialização, de fato, da nossa capacidade antagonista. Em janeiro, o que o mundo inteiro leu e viu nos mass media foi a contraposição falsa e o diálogo falso entre Davos e Porto Alegre, ao passo que a afirmação real de antagonismo em ato pel@s companheir@s na Suíça era "tornada" apenas a "face mais radical" dos que em Porto Alegre buscavam soluções mais "humanas" e "justas" para a globalização. Ora, se há algo que pode ser dito sobre a presença de inúmeros setores antagonistas no FSM, é exatamente que tal presença, constituindo a fundamental contradição deste Fórum, implicou ali a neutralização da sua ação, estabeleceu uma esquizofrenia que é própria do mundo da mercadoria e suas separações; opôs, pela presença no Fórum, o conteúdo da sua ação à ausência de uma radical recusa à subordinação a qualquer espaço-tempo neutralizador de sua ação antagonista.
 Diálogo entre nós! Guerra aos dirigentes!
Não se trata para nós, como o é para o neotrotskismo "radical" e todas as frações neobolcheviques, de propor às lutas concretas do proletariado – que eles consideram, metafisicamente, já em si revolucionárias – um programa "revolucionário" estatista e nacional-desenvolvimentista (não-pagamento da dívida externa, fora FMI, defesa das estatais etc.), apenas na forma internacionalista. Trata-se, isto sim, de ressaltar que fora do reconhecimento pelo próprio proletariado do conteúdo antagonístico de suas lutas, elas não são em si mesmas revolucionárias. E esse reconhecimento não é, insistimos, uma revelação exterior, "científica", trazida desde fora por vanguardas, especialistas ou dirigentes, mas, necessariamente, construído pelo e no diálogo prático entre os sujeitos reais das lutas proletárias; esse diálogo de quem faz e – ao fazer – diz a si mesmo o que faz. Este diálogo consciente que pode, enfim, e só ele, potencializar o diálogo prático, já agora em ato e que começa a ser comum. En la Tierra, como en la Tierra...
Quando @s noss@s companheir@s resolvem, de modo estéril e espetacular (repitamos), assinar uma nota com os candidatos a "dirigentes revolucionários", nota estatista e nacional-desenvolvimentista (Declaração dos jovens anticapitalistas contra o Fórum Social Mundial), fazem concessões aos irmãos siameses dos promotores do FSM; e isso porque, já antes, ao irem ao Fórum, o haviam feito aos próprios promotores dele. Que tal nota expresse, pelo seu título, o mesmo método da esquerda oficial, que não se questione um segundo sequer sobre a pretensão de reunir num falso mundo a diversidade que realmente somos, apenas acrescentando um "destruindo o capitalismo" puramente estético, é só a demonstração do que dissemos. Que o mundo que queremos ver substituindo a este é um mundo anticapitalista, não há dúvida; mas precisamos ser conseqüentes com isso, reconhecendo que a ruptura com o mundo único do mercado e do Estado é, forçosamente, a construção de um mundo onde caibam muitos mundos, e por isso, co-produzido - no diálogo prático - a partir da diversidade que somos e que, contra esse mundo unificado, insistimos em ser. Tal reconhecimento passa a anos-luz da nota em questão, vanguardista e cheia de pretensas verdades e verdadeiras mentiras como é toda a "esquerda oficial" em suas ideologias... O lugar da experiência e da troca é algo que não existe – e nem poderia existir – ali.
Tornar o Fórum um lugar no qual pode-se ilusoriamente fazer a crítica dele mesmo é torná-lo falsamente o lugar do diverso, do diálogo, de encontro e socialização das experiências de crítica prática; para isso serviram, como, aliás, os promotores do FSM já haviam previsto e  querido, as oficinas alternativas, o acampamento da juventude,  as declarações críticas. Ora, o FSM foi – e isso estava desde o princípio claramente previsto – o espaço da falsa diferença, da falsa multiplicidade que em verdade só reproduz o simulacro da diferença que, no mercado, encontramos entre as várias (logo)marcas ou entre os diversos partidos nos parlamentos e em todas as instituições do sistema; quando a diferença real não se nega de modo extremo e inequívoco a ser capturada e falseada, torna-se uma falsa diferença. Permitir que a luta autônoma fosse recapturada e tornada dócil e tragável pela presença no FSM é parte do equívoco brutal de enxergar em tal espaço um espaço autêntico de diálogo, um espaço no qual a multiplicidade que somos pudesse ter lugar.
Que, em nossa opinião – a qual manifestamos, claro, como parte do diálogo efetivo com o qual estamos comprometidos –, o caminho é outro, disso não pode haver dúvida. Um caminho que, a rigor, não há que ser inventado mas que estamos já construindo. Basta olharmos para nós mesmos, para nossas ações e as ações que se desenvolvem à nossa volta, comprendermo-nos e compreendê-las, intensificando e generalizando o negativo que, ainda germinalmente, está em ação. Falemos o que fazemos! Façamos o que falamos!
Uma última palavra...
Para finalizar, uma observação se faz importante aqui. Nós, coletivos autônomos, que elaboramos e assinamos essa nota, não o fizemos senão como parte de um diálogo prático; não no sacrifício das diferenças, mas num esforço em que essas diferenças apareceram a partir de uma mesma preocupação prática, já em diversos aspectos comum, e de uma reflexão comum, que, no entanto, não busca a unanimidade. Assim, os pontos de vista que aqui expressamos conjuntamente têm, sem dúvida, tensionamentos com os pontos de vista mais particulares de cada qual dos coletivos, mas tais tensões se inscrevem no experimento do que, esencialmente, afirmamos aqui: o experimento do "consenso heterogêneo" como experiência que constitui a convergência das autonomias.
Belo Horizonte, Fortaleza, Santa Maria, entre janeiro e fevereiro de 2001,
 Coletivo Acrático Proposta

Coletivo contra-a-corrente

Comunidade Piracema
 

No início do mês de setembro, tivemos contato com um plebiscito organizado pela Igreja Católica e setores da “esquerda oficial” que questionava sobre o pagamento da dívida externa. O assunto nos instigou a reflexão e resolvemos assumir o debate. Será que o não pagamento dessa dívida melhoraria a vida das pessoas? Permitiria os investimentos necessários em educação, saúde, moradia e coisas do tipo? Ou – como propõe esses setores sociais – possibilitaria o “desenvolvimento nacional”?
Pensamos sobre essas questões a partir de uma outra ótica. É que para nós as ações para melhorar a vida não estão ligadas ao desenvolvimento da economia capitalista. Na verdade, a condição de miséria da maioria das pessoas do planeta é fruto desse desenvolvimento. E isso porque esse sistema não se desenvolve de outra maneira que não seja submetendo a maior parte das pessoas à exploração por uma minoria que usufrui sozinha os frutos gerados pela maioria. Como sabemos, não existe o rico se não forem os pobres para produzirem pra ele. Da mesma forma, o que seria dos países ricos se não fossem o roubo e a exploração efetuada por suas elites nas colônias de outrora e nos atuais países pobres? Por isso, falar em “desenvolvimento nacional” pressupõe ocultar os efeitos que a dominação por ele gerada tem sobre outros povos do mundo e ainda convencer aos trabalhadores que eles devem dar o próprio sangue, se preciso for, pelo “desenvolvimento da nacional”, como se essa “nação” os incluísse. 
Será que simplesmente não pagando a dívida externa estaremos (nós, os simples mortais) nos livrando dos agiotas que ameaçam nossas vidas por alguns trocados? Será que assim deixaremos (nós, os trabalhadores e explorados) de dever contas impagáveis aos grandes bancos e lojas comerciais? Será que assim nos livraremos da exploração, da humilhação e do tédio que caracterizam o trabalho assalariado? Será que pelo menos virá alterar em alguma coisa a dominação das grandes empresas monopolistas (como a IBM, a Fiat, a McDonald’s , entres algumas outras) que controlam a economia mundial e nos impedem de viver e de criar? Estaremos nos libertando da dominação do mercado, que em todo o mundo leva as pessoas a destruir aquilo que é produzido, já que o preço é mais importante que a vida humana? O fato é que a lógica que está por trás da dívida externa convive entre nós em nosso cotidiano, pois é a mesma lógica do mercado que nos submete à disputa do dinheiro, num momento em que a humanidade já produziu tecnologias e riquezas suficientes para dar uma vida muito melhor a todos nós, sem precisarmos da irracional “luta de todos contra todos” no mercado..
Neste sentido, ser coerente com o combate à dívida externa passa por construir relações opostas àquelas ditadas pelo mercado, onde sejamos capazes de nos entender e assim definirmos o que queremos da nossa própria existência coletiva. Essa construção de que falamos passa pela realização de uma outra cultura, onde não existam dirigentes e dirigidos, dominadores e dominados, mas pessoas solidárias com a vida. E não se trata de uma proposta para daqui a cem anos, pois a gestação prática dessa crítica já envolve milhares de pessoas no mundo, principalmente no centro do capitalismo, ainda que nem sempre de modo tão consciente e explícito. São movimentos de base anti-hierárquicos que, organizando-se em torno das reivindicações mais diversas, encontram no mercado mundial o objeto comum de crítica. Por isso, esses movimentos de base têm construído ações conjuntas contra o mercado, como aquelas que no ano passado impediram a realização da reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle e já este ano em Washington prejudicaram a reunião do FMI e Banco Mundial.
Neste mês de setembro, a cúpula da burguesia mundial estará reunida em Praga, enquanto milhares de pessoas no mundo todo estarão se manifestando contra o capitalismo. Aqui em Fortaleza já temos alguns grupos se organizando, de modo que convidamos você a ser também um sujeito dessa transformação. Sendo assim, converse com os seus amigos, vizinhos, companheiros de trabalho ou de estudo sobre diversas formas de se manifestar nesse dia. Não espere por soluções mágicas vindas do alto, pois é lá de cima que “eles” tramam contra ti.
Não pagar a dívida externa! Não pagar nenhuma dívida. Não pagar nada. Troquemos o jogo cego e irracional do mercado pelo livre e coletivo jogo sobre a vida. O problema não é só dívida, mas a origem de toda a dívida e toda a miséria: a sociedade da compra e da venda, a sociedade de mercado.
No dia 26 de setembro, proteste contra o capitalismo!
Fortaleza (CE), setembro de 2000
 Coletivo contra-a-corrente


Nenhum tostão, nenhuma gota de sangue para  máquina capitalista de guerra! Nenhum apoio  às tropas da  OTAN ou ao Estado Sérvio!
Pela unidade dos trabalhadores kosovares, sérvios, europeus e norte-americanos contra a guerra capitalista!
 Desde o dia 24 de março, a humanidade assiste horrorizada a mais uma guerra capitalista. As tropas da OTAN -- sob a argumentação da "ajuda humanitária" à etnia albanesa na região de Kosovo, na Sérvia, vítima da política fascista de "limpeza étnica" do regime de Slobodan Milesovic, e como forma de pressão para que o Estado Sérvio aceite um "tratado de paz" que teria como uma de suas condições a presença daquelas mesmas tropas naquela região -- bombardeiam incessantemente prédios "públicos", alvos militares, centros de refugiados, fábricas e regiões civis na Iuguslávia. Ao mesmo tempo, o Estado Sérvio, conseguindo unir a "consciência nacional em defesa da pátria", calou a oposição e, sob o espetáculo militar dos ataques da OTAN, reforçou sua própria presença militar em Kosovo, expulsando centenas de milhares de kosovares de etnia albanesa e, praticamente, liquidando a resistência militar do EKL (Exército de Libertação de Kosovo), cujas tropas bandearam-se para as fronteiras da Albânia e da Macedônia. O "saldo" humano deste cenário de horror não pode ser avaliado, mas os números -- que, por si só, nada dizem -- falam de cerca de 600 mortos (entre civis sérvios e kosovares), além de cerca de 700 mil refugiados da etnia albanesa de Kosovo.
 A natureza econômica da guerra
 A essência desta guerra, como de todas as guerras capitalistas, é econômica. Não precisaríamos estar afirmando isto, não fosse o hipócrita discurso com que os chefes de Estado e estrategistas militares da OTAN buscam "justificar" sua ação, em nome, mais uma vez, da "ajuda humanitária" aos kosovares. Não fosse o discurso patriótico e "antiimperalista" com que o próprio Estado Sérvio busca criar condições políticas para o seu próprio enfrentamento militar às tropas da OTAN e do seu genocídio em Kosovo. Não fosse, enfim, as "explicações" dos comentadores de todos os tipos -- desde colunistas internacionais a historiadores, sociólogos e antropólogos -- que buscam dar uma explicação "religiosa" ao conflito.
A causa desta guerra, no entanto, não é senão a crise do mercado mundial. Uma das fases dessa crise, em seguida à própria dèbacle dos países capitalistas periféricos no início dos anos 80, pôs à deriva -- já no final daquela mesma década -- as economias cujo processo de modernização tiveram como bases a estatização e a planificação, tais como os países do Leste Europeu e a URSS. A revolução cientifico-tecnológica e o aumento da centralização internacional do capital retiraram toda a competitividade -- que acirrara-se na crise de superprodução do mercado mundial -- daquelas economias que, apesar da concentração estatal dos meios de produção, baseavam-se ainda, essencialmente, na exploração extensiva da força de trabalho e da natureza e cuja produção de mercadorias pautava-se ainda, hegemonicamente, de bens manufaturados, matérias-primas naturais e produtos agrícolas.
É esta feição da crise mundial do mercado que explica a crise política dos "mercados socialistas"(sic) do Leste, a desintegração da URSS e da própria antiga Iugoslávia. Nestes países, cujo processo de modernização econômica foi baseado na estatização da economia, o profundamento da crise e o fracasso do processo modernizdor iriam incidir -- pelos seus reflexos ideológicos -- justamente na própria crise da unidade do Estado. Ao contrário do que dizem os comentadores burgueses, a crise econômica não foi uma conseqüência da desintegração da Iugoslávia e de quase uma década de guerras; ao contrário, a desintegração dio Estado e as guerras é que foram conseqüências da crise. É neste cenário de crise, de decomposição econômica e social, que nasce toda sorte de ideologias nacionalistas, de xenofobias, que buscam ilusoriamente deter a decomposição econômico-social através de projetos restauradores da "nação", da "etnia", do "sangue". É essa e não outra a real essência da ideologia da "Grande Sérvia" sustentada pelo (e que sustenta o) regime nacional-"socialista" de Milesovic na Sérvia, do independentismo das ex-repúblicas iugoslávas (Croácia, Macedônia, Eslovênia e Bósnia) e, também, da ideologia da "Grande Albânia" do EKL e do Estado albanês (ideologia esta, diga-se de passagem, alimentada desde os anos 70 pelo regime stalinista albanês, mas que só ganhou corpo precisamente com o desenvolvimento da crise).
Por mais que os estudiosos burgueses tentem explicar o atual conflito a partir de uma causa étnica, religiosa ou histórica, tal explicação não resiste aos fatos. O caso da ideologia nacionalista do Estado sérvio é típico. Em 87 (ano já de crise econômica e política), Milesovic referia-se à necessidade de que os sérvios "resgatassem" o território kosovar (onde 90% da população era de origem albanesa), sob o pretexto da importância histórica daquele território para o povo sérvio. Em 88, o Estado sérvio suprimiu a autonomia administrativa que, desde 74, o território de Kosovo usufruia. É coincidência que o discurso e a prática do Estado sérvio mudem em período de crise, abandonando posições tomadas em uma época de prosperidade econômica?
Também por parte dos países da OTAN, o que está na base de suas ações militares é a crise do mercado mundial. Os dados da própria imprensa burguesa dão o indício: cada míssil usado nos bombardeios na Iugoslávia custa US$ 1 milhão. Na verdade, as ações militares da OTAN custam cerca de US$ 40 milhões por dia, tendo chegado a um total de U$S 1 bilhão de gastos em menos de um mês. Animados com este volumoso escoamento de mercadorias, os congressistas norte-americanos já discutem a aprovação de novos projetos para aumentar o orçamento militar do país neste ano ainda, elevando em cerca de US$ 200 milhões um orçamento que já é de US$$ 270 bilhões e que, do ano passado para cá, já havia crescido em US$ 9 bilhões. Num mundo que gastou US$ 740 blhões em armamentos em 97, o Estado norte-americano é responsável por pelo menos 40% deste volume. Segundo a Folha de São Paulo, "Os projetos [em discussão no Congresso americano] reforçam os lucros de uma indústria que entrou em decadência no final da Guerra Fria e que tem renascido nesse último ano do governo de presidente Clinton". E acrescenta, ao final da matéria: "Com os conflitos na Bósnia, Iraque e com o reforço da presença militar dos EUA na Ásia, a indústria de armamentos nos EUA recuperou no último ano ao menos 20% do que perdeu na última década" (04.04.99). Ora, num mercado em que é cada vez mais difícil vender carros, sapatos e roupas, a possibilidade de realização de um volume tão grande de valores mercantis é mais do que justificável para qualquer guerra. E atrás de todo exército vão (mais) mercadorias...
Na verdade, a indústria militar sempre cumpriu um importante papel na economia capitalista, particularmente em seu período monopolista, quando a imensa concentração de capitais aumentou as tendências às crises de superprodução, à produção de capital excedente e à queda da taxa de lucros. Também nos períodos de prosperidade econômica, como o do segundo pós-guerra (45-73), a indústria militar cumpriu um importante papel no refreamento dessas tendências (e esse é um dos motivos fundamentais da chamada "Guerra Fria"). Na atual guerra nos Bálcãs, isso fica claro pelo simples fato de que, a cada quatro dias, os EUA gastam mais em armas e combustível (US$ 160 milhões), do que todo o orçamento anual da OTAN previsto para a ajuda aos refugiados kosovares albaneses, fato que, aliás, por si só já desmarcara o discurso hipócrita da "ajuda humanitária".
A esquerda e a guerra
Não pode, portanto, restar dúvida que esta é a guerra da economia do mercado em crise. Mas, curiosamente, é também a guerra da esquerda. Nos dois lados beligerantes, nós temos Estados dirigidos pela esquerda. Em Inglaterra, França, Alemanha e Itália, partidos socialdemocratas, trabalhistas, "socialistas", "comunistas", ex-"comunistas" e verdes dividem ministérios entre si. Nos EUA, é o Partido Democrata. E, mesmo na Iuguslávia, governa o Partido "Socialista", sucessor da ex-Liga dos Comunistas. Na Albânia, apoiadora dos bombardeios da OTAN, governa um gabinete dirigido por um partido também chamado socialista, herdeiro do ex-PTA (stalinista), cuja vitória eleitoral se deu sobre o massacre da rebelião de 97, massacre realizado com a ajuda das tropas da Itália (já na época governada pelos ex-"comunistas" do agora PDS). É também a guerra da "geração de 68" dos pacifistas dos 70: Clinton, Jospin, Schroeder... E o falante Cohn-Bendit, que ganhou destaque público com o Maio francês de 68, não perde também a chance de mais uma vez destacar-se, demonstrando-se agora um radical defensor da guerra, antecipando-se aos acontecimentos com a exigência de que as investidas da OTAN desdobrem-se logo em ações por terra. E mesmo Gunther Grass, escritor alemão que em outras ocasiões esmerara-se por demonstrar-se um intelectual crítico e atuante, não deixou também de fazer a defesa das ações de guerra. Isso, naturalmente, sem falar de toda uma gama de intelectuais "de esquerda", feministas e ecologistas que assessoram, apóiam, ajudam, defendem os novos governos de esquerda europeus.
Neste cenário, é sem dúvida ridícula a posição do PC Francês, que, compondo o ministério de Jospin, "exige" "negociações imediatas" para que se dê um fim aos bombardeios da OTAN na Iugoslávia e à limpeza étnica em Kosovo... E, apesar deste espírito "pacifista" e "humanitário", continua tranquilamente a compor um governo beligerante e assassino, ao mesmo tempo em que chama aos assassinos da OTAN e do Estado sérvio a pararem com o genocídio que, de mãos dadas, efetuam juntos sobre os trabalhadores sérvios e kosovares. Em Portugal (cuja presença na OTAN é puramente figurativa, tanto do ponto de vista militar quanto político), o "socialista" Mário Soares anuncia-se "solidário com as tropas portuguesas e dos outros países da OTAN", argumentando que, no entanto, "não haveria outro caminho". Ao mesmo tempo, o velho e conhecido PC Português, numa declaração de um dos seus dirigentes, expressa sua "mágoa e indignação pelo tristíssimo fato", limitando-se a dirigir um "apelo premente ao presidente da República para uma urgentíssima ponderação". "Negociações", pedem os stalinistas franceses; "ponderação", reforçam os stalinistas portugueses... para todos eles, a guerra capitalista pode ser impedida pela ação dos governos capitalistas. Seria ingenuidade, se a cretinice dessa gente já não estivesse comprovada por décadas de traição aos trabalhadores e conchavos com a burguesia!
Para completar o quadro, a chamada "extrema-esquerda", em suas feições trotskistas, maoístas, castristas e de tantos outros naipes, saem em defesa do Estado sérvio sob o argumento da "luta antiimperialista". Para eles, o "imperilaismo" deixa de ser a "fase monopolista do capitalismo" (Lênin), para ser uma política dos Estados mais fortes (como dizia Kautsky). Raciocinando ainda na lógica da "nação", do "Estado nacional" e da "economia nacional", esses grupos demonstram-se incapazes de fazer a crítica pela raiz do mercado mundial em crise. Por estarem presos ainda a uma ideologia estatista e nacionalista (a ideologia do "desenvolvimento nacional" autônomo, no qual o papel do Estado seria central), eles não vêem na atual guerra (assim como na Guerra do Golfo), nada mais do que o confronto entre "Estados imperialistas" e "nações oprimidas", o "forte" o "fraco", o "atacante" e o "atacado". Ao identificarem o "imperialismo" em apenas um dos lados beligerantes, abandonam toda a crítica da essência da guerra capitalista: o capital monopolista, a luta por mercado, a crise. Na escolha do "mal menor", eles assumem a defesa patriótica do Estado sérvio e, programaticamente, assumem postos nas trincheiras da guerra capitalista do mesmo modo que fazem os stalinistas e socialistas governamentais.
O que este simples fato demonstra é que a velha esquerda -- tanto a reformista, quanto a "revolucionária" -- compõe a velha lógica do mercado e do Estado.
 Nossa posição
 Para nós, os trabalhadores não devem compor nenhum dos lados da guerra. É perfeitamente compreensível que os trabalhadores norte-americanos e europeus, diante das imagens e das notícias do genocídios em Kosovo, queiram dar um fim nisso. É perfeitamente justa e legítima a revolta e a indignação dos trabalhadores sérvios diante dos bombardeios da OTAN, que estão transformando suas vidas em um inferno, tirando-lhes o "sossego", quando não a própria vida. Do mesmo modo, é justa e legítima a vontade do albaneses de Kosovo de determinarem livremente a sua vida, livre das imposições do Estado sérvio. Mas nenhum desses justos sentimentos poderão ser realizados através do apoio às tropas da OTAN e sérvias.
Ambos os lados beligerantes são expressões de interesses econômico-sociais opostos aos dos trabalhadores. As tropas da OTAN não bombardeiam por Kosovo; as armas sérvias não atiram em defesa dos trabalhadores sérvios. A morte e a destruição que horrorizam os nossos olhos só têm um significado: trata-se de sacrifícios no altar do capital. A única coisa que os trabalhadores e jovens têm a dizer é: fim da guerra! Nenhum tostão, nenhuma gota de sangue para a guerra capitalista! Mas o fim da guerra deve ser procurado não nos acordos ("negociações") entre os cavalheiros da morte, mas entre os que querem viver: os trabalhadores. Já está mais do que na hora de romper com o patriotismo e o nacionalismo, recuperando o antigo espírito de solidariedade internacional entre os trabalhadores, o internacionalismo proletário. Por isso, chamamos aos trabalhadores kosovares, sérvios, norte-americanos e europeus a não darem nenhum apoio às tropas sérvias e da OTAN, a lutarem contra a guerra capitalista mobilizando-se contra o Estado beligerante em seu próprio país.
 Fortaleza, 22 de maio de 1999
  coletivo contra- a-corrente  

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